Faltam apenas algumas horas para sair 2006 e entrar 2007. Quem chegará primeiro, quem chegará por último? Aqui faz-se a contagem ao segundo.


(Trecho de Budapeste, de Chico Buarque, direitos reservados para texto e imagem)
(este blogue bem tentou fugir à rotina dos lugares comuns, mas chegou um belo dia em que se cansou e, vai daí, virou-se do avesso)
Um dos marines, com pinta de italo-americano, volta e meia, mirava-a de soslaio, enquanto os seus comparsas se metiam com ele. (…) De qualquer forma, de súbito todas as atenções convergiram para a enorme bola luminosa que começava a girar e a descer à terra em contagem regressiva. Os últimos sessenta segundos. Mais um ano prestes a escoar-se como areia por entre os dedos entreabertos. Quis fazer um balanço-relâmpago da sua vida no último ano, mas não conseguiu concentrar-se. A multidão estava ao rubro. Juntou-se ao coro nos dez segundos finais. E foi então que a esfera psicadélica pareceu explodir e a chegada do novo ano foi anunciada com o numérico a piscar sem parar.
Ao mesmo tempo que o céu era riscado por uma saraivada de trovões incandescentes, comandados à distância por computador, sobre as suas cabeças abateu-se uma chuva de papelinhos cintilantes de mil e uma cores. A imagem que tantas vezes vira na televisão repetia-se perante si para seu enorme deslumbramento. Apeteceu-lhe chorar de emoção. À sua volta, as pessoas riam, pulavam, beijavam-se, abraçavam-se… Deu-se conta que estava agora lado a lado com o marinheiro que ainda há pouco a fintava. Empurrados um para o outro por uma multidão que parecia conspirar a seu favor, tiveram a sensação de ser os únicos que permaneciam inertes. Levados pelo momento, e como tivessem acabado de assistir a um serviço religioso, deram um abraço rápido de circunstância. Ou melhor, deu Ela, pois ele, num gesto claramente irreflectido, voltou a puxá-la para si e desferiu-lhe um beijo de supetão.
Apanhada de surpresa, Ela só teve tempo de cerrar os lábios e de ensaiar uma tentativa de o empurrar para trás. Ainda com a boca dele colada à sua, os olhos dela, irados como mar revolto, detiveram-se nos dele, serenos como espelhos de água. Houve qualquer coisa naquele olhar, onde se podia ver reflectida, que a levou dali. Deixou de ouvir o barulho à volta, de sentir os encontrões, de pensar em mais nada que não fosse aquele beijo. À medida que afrouxou os lábios, sentiu o hálito morno dele, ligeiramente acidulado pela cerveja, misturar-se com o seu. As línguas encontraram-se e contorceram-se às cegas até se unirem num abraço sôfrego.
Enquanto durou o beijo foi como se tivessem estado dentro de uma cápsula. À parte. Imersos num tempo paralelo, que corria mais devagar, ao passo que à volta continuava tudo igual, numa rotação acelerada. Não ficaram suspensos no tempo. Apenas aquele momento, que para os outros não terá excedido os dois ou três minutos, equivaleu para eles a uma pequena eternidade. Deu mesmo para Ela abandonar o seu corpo por instantes e assistir à cena de fora. Dois corpos, lembrar-se-ia Ela mais tarde, enlaçados num beijo memorável, digno de figurar, caso alguém se tivesse dado ao trabalho de o imortalizar para a posteridade, entre a sequência final do “Cinema Paraíso”, o seu filme de eleição.
Ninguém os fotografou ou filmou. Aliás, quando soltaram o beijo foi como se ninguém tivesse dado por eles. (…) E nem sequer tiveram tempo de trocar uma única palavra, pois mal se largaram, a massa humana em movimento tratou de os arrastar para cantos opostos.
Atordoada, Ela demorou uns minutos a recompor-se. Não sabia o que pensar. Chegou mesmo a duvidar se aquele beijo teria realmente acontecido ou se tudo não passara de uma alucinação. O seu coração batia ainda descompassado e na boca sentiu um travo acidulado familiar. Não fora uma ilusão. Os seus olhos varreram a multidão à procura dele. Nem sinal.
Melhor assim, concluiu.
(…) Neste ano havia dispensado as passas, o brinde com champanhe e a troca de votos com quem lhe era mais querido, mas não abria mão dos seus desejos. O bom destes rituais de passagem, pensou, é que, ao repetirem-se ano após ano, devolvem ao ser humano a ilusão de é que possível zerar o conta-quilómetros da vida. Começar de novo. Uma ilusão que ajuda a manter-nos vivos. A manter a esperança.
Talvez por isso, em vez de lamentar o beijo trocado com um estranho, resolveu lembrar-se dele como um bom presságio para o ano acabado de chegar. Sentiu vontade de ouvir uma voz familiar. (…) E foi então que se deu conta de algo que, no fundo, sempre soubera e que só não se atrevera até então a admitir. Nem para si mesma. A solidão pode ser uma boa companhia, até mesmo uma boa conselheira. Só não deve é tornar-se possessiva a ponto de nos impedir de dar o devido valor à comunhão e à entrega ao outro. Cansou-se de estar sozinha nessa noite, mas a revelação, em vez de amargura, trouxe-lhe paz. A paz de quem sabe estar sozinha porque quis e não porque a isso foi obrigada.
(Trecho do conto O beijo, escrito por JMS em 2005-2006)
Se fosse vivo, Hergé iria comemorar, em Maio de 2007, o centenário do seu nascimento. Para assinalar a data, o Centro Pompidou, no Beaubourg, Paris, dá finalmente, com o jornal Le Monde já vaticinou, o passo que faltava para colocar de vez “a obra hergiana no panteão da arte moderna” através de uma exposição, em parceria com a Fundação Hergé, dedicada ao criador de Tintin. A exposição, com entrada gratuita, vai decorrer até 19 de Fevereiro de 2007 e, entre muitas outras coisas, tem como grande atractivo o facto de, pela primeira vez, exibir a colecção completa das 124 pranchas originais do livro “O Lótus Azul”, desenhada entre 1934 e 1935. Absolutamente imperdível para quem, como eu, se habitou a viajar e a ver o mundo através de Tintin. É que hoje pode até estar provado que Hergé raramente deixou a Bélgica, mas uma coisa é certa ― e vou citar uma vez mais o Le Monde ― “ele fez bem mais do que colocar apenas uma galeria de personagens nas vinhetas a correr à aventura; ele criou um universo coerente, quer pelo traço, quer pelo espírito, e deu muito de si. Por isso, sem dúvida alguma, ele construiu à volta de Tintin, mais do que uma obra, uma verdadeira obra-prima”.
“Francisco Palmares suspira, ergue os olhos e vê um anjo. A luz passa através dele, como é suposto que aconteça com os anjos, e desce depois dourada e mansa sobre os largos espelhos com molduras de jacarandá.
«Cada espelho destes pesa uma tonelada e meia. Vieram da Bélgica no princípio do século. Certamente ainda guardam a imagem de Olavo Bilac, Machado de Assis, Lima Barreto. Todos eles tinham o costume de vir aqui tomar chá às cinco da tarde, sabias?»
Monte encolhe os ombros.
«Não sabia e nem isso me interessa. Prefiro a nossa Biker, em Luanda, agrada-me a decadência.»
O coronel ignora o comentário.
«O Olavo Bilac era tão pontual que as pessoas costumavam acertar o relógio assim que ele entrava.»