30.12.06

Hoje é dia...


Falta apenas 1 dia para sair 2006 e entrar 2007. Quem chegará primeiro, quem chegará por último? Aqui faz-se a contagem ao segundo.

Escolhi Nova Iorque para vos desejar um 2007 iluminado...

(Chuva de confettis em Times Square, Nova Iorque, direitos reservados)

... mas, antes, deixem-me contar-vos uma estória.

A meia-noite aproximava-se a passos largos. A multidão estava mais frenética do que nunca. Ela deixou-se contagiar. Ao ponto de sacudir o cansaço e de esquecer as longas horas de espera. O grande momento, o clímax, não tardaria muito. E foi por esse breve instante, pensou Ela, que tinha cometido a loucura de, pela primeira vez na sua vida, passar um réveillon sem família ou amigos por perto (…).
Ao seu lado, um grupo de marines norte-americanos. Reparara neles momentos antes – para além do barulho que faziam, a sua farda branca não passava despercebida –, mas só então se dava conta de que o acaso se tinha encarregue de a brindar com mais um cliché nessa noite. Para além de estar em Times Square, estava também a ser alvo da atenção dos marinheiros. Uma cena digna de um velho clássico como o “On the Town”, em que Frank Sinatra e Gene Kelly, fardados a rigor, se aventuram na Broadway em busca de aventuras amorosas.

Um dos marines, com pinta de italo-americano, volta e meia, mirava-a de soslaio, enquanto os seus comparsas se metiam com ele. (…) De qualquer forma, de súbito todas as atenções convergiram para a enorme bola luminosa que começava a girar e a descer à terra em contagem regressiva. Os últimos sessenta segundos. Mais um ano prestes a escoar-se como areia por entre os dedos entreabertos. Quis fazer um balanço-relâmpago da sua vida no último ano, mas não conseguiu concentrar-se. A multidão estava ao rubro. Juntou-se ao coro nos dez segundos finais. E foi então que a esfera psicadélica pareceu explodir e a chegada do novo ano foi anunciada com o numérico a piscar sem parar.
Ao mesmo tempo que o céu era riscado por uma saraivada de trovões incandescentes, comandados à distância por computador, sobre as suas cabeças abateu-se uma chuva de papelinhos cintilantes de mil e uma cores. A imagem que tantas vezes vira na televisão repetia-se perante si para seu enorme deslumbramento. Apeteceu-lhe chorar de emoção. À sua volta, as pessoas riam, pulavam, beijavam-se, abraçavam-se… Deu-se conta que estava agora lado a lado com o marinheiro que ainda há pouco a fintava. Empurrados um para o outro por uma multidão que parecia conspirar a seu favor, tiveram a sensação de ser os únicos que permaneciam inertes. Levados pelo momento, e como tivessem acabado de assistir a um serviço religioso, deram um abraço rápido de circunstância. Ou melhor, deu Ela, pois ele, num gesto claramente irreflectido, voltou a puxá-la para si e desferiu-lhe um beijo de supetão.
Apanhada de surpresa, Ela só teve tempo de cerrar os lábios e de ensaiar uma tentativa de o empurrar para trás. Ainda com a boca dele colada à sua, os olhos dela, irados como mar revolto, detiveram-se nos dele, serenos como espelhos de água. Houve qualquer coisa naquele olhar, onde se podia ver reflectida, que a levou dali. Deixou de ouvir o barulho à volta, de sentir os encontrões, de pensar em mais nada que não fosse aquele beijo. À medida que afrouxou os lábios, sentiu o hálito morno dele, ligeiramente acidulado pela cerveja, misturar-se com o seu. As línguas encontraram-se e contorceram-se às cegas até se unirem num abraço sôfrego.
Enquanto durou o beijo foi como se tivessem estado dentro de uma cápsula. À parte. Imersos num tempo paralelo, que corria mais devagar, ao passo que à volta continuava tudo igual, numa rotação acelerada. Não ficaram suspensos no tempo. Apenas aquele momento, que para os outros não terá excedido os dois ou três minutos, equivaleu para eles a uma pequena eternidade. Deu mesmo para Ela abandonar o seu corpo por instantes e assistir à cena de fora. Dois corpos, lembrar-se-ia Ela mais tarde, enlaçados num beijo memorável, digno de figurar, caso alguém se tivesse dado ao trabalho de o imortalizar para a posteridade, entre a sequência final do “Cinema Paraíso”, o seu filme de eleição.
Ninguém os fotografou ou filmou. Aliás, quando soltaram o beijo foi como se ninguém tivesse dado por eles. (…) E nem sequer tiveram tempo de trocar uma única palavra, pois mal se largaram, a massa humana em movimento tratou de os arrastar para cantos opostos.
Atordoada, Ela demorou uns minutos a recompor-se. Não sabia o que pensar. Chegou mesmo a duvidar se aquele beijo teria realmente acontecido ou se tudo não passara de uma alucinação. O seu coração batia ainda descompassado e na boca sentiu um travo acidulado familiar. Não fora uma ilusão. Os seus olhos varreram a multidão à procura dele. Nem sinal.
Melhor assim, concluiu.
(…) Neste ano havia dispensado as passas, o brinde com champanhe e a troca de votos com quem lhe era mais querido, mas não abria mão dos seus desejos. O bom destes rituais de passagem, pensou, é que, ao repetirem-se ano após ano, devolvem ao ser humano a ilusão de é que possível zerar o conta-quilómetros da vida. Começar de novo. Uma ilusão que ajuda a manter-nos vivos. A manter a esperança.
Talvez por isso, em vez de lamentar o beijo trocado com um estranho, resolveu lembrar-se dele como um bom presságio para o ano acabado de chegar. Sentiu vontade de ouvir uma voz familiar. (…) E foi então que se deu conta de algo que, no fundo, sempre soubera e que só não se atrevera até então a admitir. Nem para si mesma. A solidão pode ser uma boa companhia, até mesmo uma boa conselheira. Só não deve é tornar-se possessiva a ponto de nos impedir de dar o devido valor à comunhão e à entrega ao outro. Cansou-se de estar sozinha nessa noite, mas a revelação, em vez de amargura, trouxe-lhe paz. A paz de quem sabe estar sozinha porque quis e não porque a isso foi obrigada.
(Trecho do conto O beijo, escrito por JMS em 2005-2006)

8 comentários:

marta r disse...

Escolha perfeita a de NY.

O conto... pois, o conto. Por momentos, eu fui Ela. Mérito das palavras que me envolveram sem que desse conta. Até acho que senti o calor daquele beijo roubado mas cheio de significado...

FELIZ (e iluminado) 2007, Miguelito.

Anónimo disse...

Para ti também, Martucha!

Luis disse...

Grande Miguel...
Um feliz 2007 para todos...
Um abraço,

Anónimo disse...

Obrigado Lad, mais uma vez, boas saídas, melhores entradas!

Custódia C. disse...

Ah Miguel! Quando um dia eu estiver em NY, a passar a meia noite de um dia 31 de Dezembro, em Times Square, vou lembrar-me do teu conto!
Um gostoso 2007 para ti!

Anónimo disse...

Tudo de bom para ti também , CCC!

Suzi disse...

Miguel, és bom também na ficção, menino!
;o)

Transportei-me para a cena. "Viajei", como se diz por aqui. Viajei nas palavras, deixei-me envolver pelo clima e como a Martinha por alguns momentos eu fui Ela, também.
Além de tudo, a cena poderia se passar nas areias de Copacabana, e eu imaginei tudo isso num palco que já pisei na noite do dia 31 por tantas vezes...

Mas não haveria escolha mais perfeita que NY e sua Times Square; porque ali, me parece, há espaço para todos os sonhos de cor e alegria. E a festa de luzes dura o ano inteiro.
Amei o conto!

FELIZ 2007!!!
E valeu!, por compartilhar conosco tantos "lugares comuns", com seu olhar quase incomum, Miguelito!
Foi um grande achado, você, na blogosfera. E um visitante muitíssimo querido, lá no blogdasuzi!
Beijos!

Anónimo disse...

Suzi, és sempre uma visita muita querida aqui no Lugares Comuns. Em muito pouco tempo a blogosfera já me deu algumas lições valiosas. E uma das coisas boas foi, sem dúvida, estar a "conhecer" pessoas como tu. TUDO DE BOM PARA TI EM 2007!