19.7.07

A ilusão



Era uma vez um miúdo que não gostava de circo ― quando todas as outras crianças riam com os palhaços, ele, apavorado, chorava.

O miúdo não gostava de circo, mas queria ser como o rapaz do trapézio voador.

O miúdo, agora homem, tornou-se o rapaz da porta ao lado e não o rapaz do trapézio voador.

O rapaz da porta ao lado passou a invejar o rapaz do trapézio voador porque o rapaz do trapézio voador era tudo aquilo que ele, o rapaz da porta ao lado, queria ser mas não era.

O rapaz da porta ao lado invejava a liberdade e a audácia do rapaz do trapézio voador porque o rapaz do trapézio voador arriscava a vida todas as noites, ao passo que ele, o rapaz da porta ao lado, se limitava a viver sem riscos.

O rapaz da porta ao lado invejava o rapaz do trapézio voador porque o rapaz do trapézio voador vivia na luz, ao passo que ele, o rapaz da porta ao lado, se limitava a ficar quieto na sombra.

O rapaz da porta ao lado invejava o rapaz do trapézio voador porque o rapaz do trapézio voador conservava as suas asas e a ilusão intacta de tocar no céu, ao passo que ele, o rapaz da porta ao lado, tinha trocado as suas asas pela ilusão de ser apenas um homem entre os homens.

Mas, um dia, o rapaz da porta ao lado descobriu que também podia ser o rapaz do trapézio voador.

Como um ilusionista que, à força de tanto repetir o truque, se convence da ilusão, também o rapaz da porta ao lado acreditou que podia ser o rapaz do trapézio voador.

Todas as noites, o rapaz da porta ao lado pendurou-se no trapézio, a baloiçar de um lado para o outro, à espera de alguém que agarrasse a sua mão estendida.

Todas as noites, o rapaz da porta ao lado lançou-se do trapézio, num voo sem rede, à espera de ter uma mão estendida a que se agarrar.

Até que se cansou de esperar.

O rapaz da porta ao lado cansou-se de ser o rapaz do trapézio voador e quis voltar a ser apenas o rapaz da porta ao lado.

O rapaz da porta ao lado deixou de invejar o rapaz do trapézio voador porque descobriu que o rapaz do trapézio voador fazia da ilusão a sua vida, ao passo que ele, o rapaz da porta ao lado, fazia da vida, sempre que queria, uma ilusão.

5 comentários:

nelio disse...

muito bom!

Suzi disse...

o segredo está nas asas...
em mantê-las, em usá-las, conservá-las, protegê-las, e voar, voar, voar...

marta r disse...

Nunca estamos como e onde queremos ou a ilusão não deve ser uma forma de vida? Ou nem sempre o que parece é? Ou é preciso experimentar certas circunstâncias para poder percebê-las?

Assim, de repente, este teu texto levanta algumas das questões mais relevantes da nossa existência...

Custódia C. disse...

Estás a escrever tão bem Miguel :)
A ilusão é~muito necessária à vida, mas é preciso saber ligá-la à realidade.

Luís F. disse...

Nada como umas doses bem regradas de ilusão…