21.2.07

Diários de São Paulo (final)

(Vista geral de São Paulo, direitos reservados)


Garoa do meu São Paulo
― Timbre triste de martírios ―

um negro vem vindo, é branco!
Só bem perto fica negro,

Passa e torna a ficar branco.


Meu São Paulo da garoa

― Londres das neblinas finas ―

um pobre vem vindo, é rico!

Só bem perto fica pobre,

Passa e torna a ficar rico.

(…)

Garoa, sai dos meus olhos.
(Mário de Andrade, Garoa do meu São Paulo, in Lira Paulistana)

E já em Lisboa que encerro os meus Diários de São Paulo. O que gosto e não gosto numa cidade, uma "Selva de Pedra" com alma, onde nem tudo o que parece é.


(Vista geral de São Paulo, direitos reservados)


Gosto de São Paulo. Gosto da ideia de gostar de São Paulo. Gosto mais de São Paulo em dias de sol. Gosto menos de São Paulo em dias de chuva e de neblina. Não gosto de não ser respeitado enquanto peão nas passadeiras. Gosto do rigor de São Paulo. Não gosto quando os paulistanos se levam demasiado a sério.


(D.O.M., São Paulo, direitos reservados)


Gosto da cozinha ao mesmo tempo simples e sofisticada de Alex Atala em o D.O.M. (ver Diários 1), mas também gosto da cozinha artesanal de Ana Luiza Trajano em o Brasil a Gosto. Gosto de comida elaborada, mas também gosto dos hambúrgueres premiados do Ritz (R. Jerónimo da Veiga, 141, Itaim Bibi, na foto) e do sanduíche Beirute da lanchonete Frevo. Não gosto da cozinha de fusão só para ser moda e quando sobrepõe a estética ao conteúdo.


(Sanduíche Beirute, Frevo, direitos reservados)


Gosto do Parque de Ibirapuera, das suas árvores, das suas sombras, dos pais que levam os filhos a passear na garupa da bicicleta. Gosto do Auditório de Oscar Niemeyer (na foto) e da Oca. Gosto da ideia de ter um café como o Prêt MAM, que dá para espiar o parque por um olho e obras de arte por outro. Não gosto de continuar a ouvir o trânsito quando estou ali. Não gosto de ver o lago poluído.



(Marquise do Ibirapuera, São Paulo, direitos reservados)



Gosto dos japoneses de segunda e terceira geração que enchem o bairro da Liberdade (na foto). Gosto dos descendentes de italianos do Bixiga e da Mocca que criaram em São Paulo as melhores pizzarias e cantinas, como o Quintal do Bráz, fora de Itália. Gosto das padarias judias, como a Benjamin Abrahão, do bairro de Higienópolis. Gosto da mistura de raças. Gosto das mulheres-meninas, esguias como gazelas, que resultaram dessa mistura de raças. Não gosto da obsessão em ser magro a todo o custo.


Gosto da moda brasileira. Gosto dos criadores brasileiros, como Adriana Barra (na foto) ou a Osklen, e da sua criatividade. Gosto das fachadas imaginativas e coloridas das lojas dos Jardins. Não gosto da ostentação da Daslu. Não gosto dos seus preços exagerados. Não gosto que as arrumadeiras andem fardadas como se fossem criadas.





(Daslu, São Paulo, direitos reservados)


Gosto da pluralidade e da variedade humana dos “inferninhos” da Rua Augusta, na Consolação (na foto Vegas Club, ver Diários 1). Gosto da happy hour nos bares da Vila Madalena. Gosto menos das discotecas e dos bares in de Vila Olímpia e Itaim Bibi. Não gosto da decoração desses lugares. Não gosto de aturar tipos bêbados quando sóbrios seriam muito mais interessantes. Não gosto de entrar nesses lugares só porque sou amigo ou conhecido de gente que conta.



Gosto da simpatia com que somos atendidos na Chocolat du Jour da Haddock Lobo. Gosto da mistura de chocolates e das trufas que chegam todos os dias, frescas, vindas da fábrica em Itaim. Gosto dos doces criados por Fabrice Lenud na France Douce. Gosto de beber um expresso com um brownie na Payard (na foto) sempre que passo no Shopping Iguatemi. Não gosto quando juntam água aos sumos de fruta. Não gosto do sabor aguado do melão, tão diferente do português.


Gosto de ter um café a que passei a chamar de meu, o Suplicy, na Alameda Lorena. Gosto de beber ali um expresso enquanto leio o jornal. Gosto que incluam no serviço um copinho de água com gás. Gosto de ficar a olhar as pessoas que ali entram, sozinhas ou acompanhadas. Não gosto dos lugares onde só há café aguado.







Gosto do sabor do açaí (na foto) e do cupuaçu ― graças à minha amiga Marion, descobri uma sobremesa óptima, Mil Folhas de dois brigadeiros com creme inglês de cupuaçu, no restaurante Vira-Lata, em Higienópolis. Gosto de caipirinhas com saké e frutas. Não gosto de caipirinhas aldrabadas com saké de terceira.


Gosto dos prédios de São Paulo. Gosto quando têm um pequeno jardim à entrada. Gosto da arquitectura modernista de São Paulo (na foto Memorial da América Latina). Não gosto dos novelos de fios de electricidade à vista. Não gosto dos passeios públicos aos altos e baixos. Não gosto das estradas esburacadas e abauladas.



(Coplan, prédio residencial de Oscar Niemeyer, São Paulo, direitos reservados)


Gosto do Museu da Língua Portuguesa. Gosto do que fizeram à Estação da Luz. Gosto de brincar com as palavras e ficar a ouvir os nossos poetas. Os nossos sotaques. Gosto de museus que despertam os sentidos. Gosto da Pinacoteca. Gosto da esplanada da Pinacoteca, voltada para o Jardim da Luz. Não gosto da miséria à volta. Não gosto que me venham lembrar que, por mais bonita que seja a estrutura de ferro das estações de comboios, há, não muito longe dali, crianças viciadas que dão o triste nome de “Cracolândia” a toda uma área onde ninguém quer ir. Não gosto das putas tristes que se vendem por entre o arvoredo.


(Grande Sertão: Veredas, instalação de Bia Lessa no MLP)


Não gosto do luxo pelo luxo. Gosto do luxo como sinónimo de refinamento e elegância. Gosto das poltronas de couro do Fasano. Gosto de entrar num hotel onde, em vez da recepção, tenho um bar com poltronas de couro (na foto). Gosto da forma como a Tatiana caminha na rua e os olhares param para a ver passar. Não gosto dos portugueses de nariz empinado que encontrei no elevador.





Gosto que o Emiliano seja um hotel moderno, mas que ainda assim insista em fazer do bom serviço um dos seus melhores cartões de visita. Gosto da ideia de ter sido o músico Ed Motta a pensar nos chás que compõem a carta. Gosto de ter feito um novo amigo ali. Gosto de ter várias almofadas à escolha na hora de dormir. Gosto de me sentar nas poltronas de cordas douradas dos irmãos Campana (na foto). Não gosto que o Emiliano se sinta na necessidade de criticar a concorrência.


Gosto do sotaque paulistano. Não gosto do sotaque paulistano.


Gosto da oferta cultural de São Paulo. Gosto dos seus teatros. Dos seus shows. Das suas exposições. Gosto da cultura de frequentar restaurantes, de seguir as tendências, de saber quem são os chefes do momento. Não gosto de ter de pagar caro para viver bem ali. Não gosto da ideia de que para ser feliz em São Paulo é preciso ter (muito) dinheiro ou, então, viver acima das suas possibilidades.


Gosto de comida libanesa. Gosto de saber que quando não puder, ou quiser, gastar os olhos da cara no Arábia, na Haddock Lobo, posso passar em A Tenda do Nilo (ver Diários 2, na foto carne com coalhada fresca), no Paraíso. Gosto que me tenham dito, na hora da despedida, que ganhei uma família no Brasil sempre que ali voltar. Mesmo que tenha sido dito da boca para fora. Não gosto de carne de cordeiro.


Gosto de ter amigos em São Paulo. Gosto de poder contar com eles. Gosto de ouvi-los. De saber como vivem. De saber como vêem a cidade. Não gosto da superioridade com que os paulistanos tratam o resto do Brasil. Não gosto de ver uma cidade do primeiro mundo com tantos tiques e mazelas terceiro-mundistas.

9 comentários:

marta r disse...

E eu gosto de textos como este!

Belíssimo retrato de SP, Miguelito.

Zorze Zorzinelis disse...

"Não gosto de ver uma cidade do primeiro mundo com tantos tiques e mazelas terceiro-mundistas", entre outras belas citações que poderia ter feito copy/paste. Muito bom, Miguel, muito bom!

Custódia C. disse...

E eu gosto de te ler Miguel.
Que bela prosa, quase poética.

Luis disse...

Sim senhor...
Ainda bem que nos mostras um pouco da tua viagem... Excelente... Quase que viajamos contigo ao lêr os textos...
Um abraço.
LAD

Suzi disse...

Um texto agradável e realista. Uma visão imparcial e emotiva, ao mesmo tempo.
E eu, gosto que tenhas ído a São paulo, mas não gosto que não tenhas tido tempo de vir ao Rio...
;o)

Bom regresso pra nós!
Eu também andei meio que "viajando", nos últimos dias...

Anónimo disse...

Vc entendeu absolutamente tudo de São Paulo. Ia me oferecer pra passear pela cidade qdo vc viesse, mas já vi q vc não precisa de mim pra nada! Até na Tenda do Nilo vc foi! Adoro aquele lugar.
Isso é q é saber viajar, arrasou! beijo.

Anónimo disse...

Roberta:
Vou aceitar o seu convite da próxima vez que for a São Paulo, pois nunca é demais ter quem guie os nossos passos. Fico feliz por você aprovar o meu roteiro, pois em matéria de restaurantes, a entendida é você, eu sou um mero curioso. Bjo

Suzi:
Bem-vinda. Não preciso dizer que as saudades de te ver por aqui já eram muitas!

frapê disse...

...e eu adoro saber o que adora e o que não adora um ser querido e sensível como você, amigo! amigo que sempre será, aqui em Sampa, aí em Lisboa, ou acolá, em qualquer lugar. (essa amizade à distância me inspira, João!) beijocas :o)

Anónimo disse...

Valeu,Pin. Um grande beijo.