26.2.07

Uma verdade inconveniente?

Daqui a um ou dois dias, começo a escrever o meu texto sobre São Paulo (a previsão aponta para Maio, nas bancas em finais de Abril). Uma vez mais, uma questão se me coloca: como passar a mensagem de forma correcta? Melhor: como encontrar o equilíbrio certo entre o que considero ser um retrato pessoal, baseado nas minhas impressões e vivências ― que se leia com vontade, independentemente do leitor estar ou não a pensar viajar ao lugar em questão ―, e um roteiro útil, recheado de boas dicas, para quem se dá ao trabalho de, mais do que “apenas” ler este tipo de textos, coleccioná-los na esperança de algum dia os testar? Motivar os primeiros a não se ficarem apenas pelos bonecos (as imagens, o que nos levaria a outra discussão, mas não vou entrar por aqui… não agora!) e não defraudar as expectativas dos segundos não é, acreditem, uma tarefa fácil para quem, como eu, luta há anos para ser levado a sério numa variante do jornalismo que carece ainda de regras próprias e do devido reconhecimento (dos seus pares, inclusive).

Acontece que, sobretudo nos últimos tempos, me tenho deparado com uma outra dificuldade. Uma dificuldade que, confesso, não esperaria encontrar depois de já termos queimado tantas etapas: como conseguir falar nos aspectos negativos, ou menos positivos se quiserem ir pelo politicamente correcto, sem que o editor se sinta tentado a censurar (a palavra é forte, mas não deixa de ser a correcta) o meu texto em nome daquilo que a revista entende ser “desnecessário” ou “susceptível de criar anti-corpos” em quem lê face ao destino em causa? Imagino que, dito assim, à queima-roupa, a minha questão suscite alguma indignação: mas, afinal, perguntar-me-ão, nos dias de hoje ainda se pratica censura? Claro que sim. E não julguem que estou a falar dos administradores atentos aos números ― os que querem ter revistas de viagens no seu grupo editorial porque é moda, mas depois continuam a achar, passados tantos anos, que fazem um tremendo favor aos senhores que lá trabalham, pois estão a pagar-lhes para eles andarem no “bem bom”, que é como quem diz a viajar pelo mundo inteiro. Estou mesmo a falar dos directores, dos chefes de redacção e dos editores que, mesmo sendo na sua maioria pessoas bem (in)formadas, cedem à desculpa fácil de que uma revista de viagens não se deve imiscuir na política e nas causas sociais, quando, na realidade, estão apenas com medo de que, não tendo as revistas portuguesas orçamentos que lhe permitam realizar as viagens sem ajudas externas, algum dos seus habituais parceiros se sinta melindrado.


(Rio de Janeiro, direitos reservados)


Já estive à frente de uma revista de viagens, por isso sei até que ponto a questão das parcerias é algo de muito sensível. Mas acreditam se lhes disser que, nos anos em que exerci esse cargo, nunca censurei o texto de nenhum jornalista nem dei indicações, veladas ou expressas, para omitir o lado menos agradável dos lugares visitados? Como em tudo na vida, acho que é, sobretudo, uma questão de bom senso. Bom senso na hora de aceitar este ou aquele convite (e há convites e parcerias que, logo de caras, mais vale recusar pelas implicações que poderão acarretar); bom senso de quem escreve, e sabe que pode e deve ser responsabilizado pelo que diz; bom senso de quem publica e sabe ter a obrigação de informar com rigor o seu público.

Não tenho muitos casos de textos “censurados”, até porque me bato sempre por aquilo que acredito ser a integridade do meu trabalho, mas há dois exemplos recentes que me marcaram: primeiro, numa reportagem sobre o Rio de Janeiro, tive de INSISTIR que queria focar a questão da violência, até para a integrar no seu devido contexto e ajudar as pessoas a perceberem melhor aquilo que vêem apenas nas notícias. Fiquei com a sensação clara de que se não tivesse querido falar na questão, ninguém na revista se teria importado e, talvez, até tivessem preferido (pergunto: não deveria ser essa uma das primeiras preocupações quando se pensa em publicar uma reportagem sobre o Rio de Janeiro e se sabe, à partida, que muitos portugueses morrem de vontade de lá ir, mas têm medo?).
A outra foi numa reportagem sobre a ilha tunisina de Jerba. Para quem não sabe, esta ilha tem a particularidade de assistir há vários séculos a uma convivência pacífica entre muçulmanos e judeus, por isso, quando falei na sinagoga El-Ghriba, achei que não podia deixar de fora um episódio marcante, até por ter sido uma excepção: no fatídico 11 (uma data que se repete nos atentados da Al Qaida) de Abril de 2002, um camião cisterna explodiu contra as paredes da principal sinagoga da ilha, provocando a morte de 21 pessoas (entre eles, turistas alemães e um francês). Com medo das repercussões que isso poderia ter no seu turismo, as autoridades tunisinas demoraram a dar explicações e tentaram desdramatizar o incidente. Pois bem, recebi um telefonema do editor a comunicar-me que tinham optado por eliminar este trecho da minha reportagem. Justificação: as pessoas têm pavor dos atentados da Al Qaida e isso funcionaria logo como pretexto para evitarem Jerba. Depois de esgrimirmos argumentos por alguns minutos, acabei por ceder, não sem antes deixar claro que achava uma decisão pouco ética e uma forma de subestimar a inteligência de quem nos lê. Arrependo-me até hoje de ter cedido (embora, na prática, não tivesse muitas outras alternativas).



(Sinagoga El-Ghriba, Jerba, direitos reservados)


A mais antiga revista de viagens em Portugal tem apenas 12 anos. Pouco tempo, é certo, mas mesmo imberbe já deu tempo de sobra para aprendermos várias lições. Eu, que ando nisto desde quase o início e que já vi muitas pessoas irem e virem, gostaria de acreditar que a fase do deslumbramento fica só por conta de quem se estreou há pouco na profissão e ainda acha o máximo haver quem lhe pague para viajar. Quero acreditar também que quem lê revistas de viagens, tal como quem trabalha nelas, evoluiu e não só aprendeu a distinguir o trigo do joio, como quer igualmente escolher os seus destinos de férias e/ou de escapadas com base em informações reais e não só em descrições idílicas onde, de cinco em cinco minutos, se emprega a palavra “paraíso” (esta palavra foi tão banalizada nas reportagens de viagens que, hoje, muitos de nós ganharam-lhe aversão!).

Será que estou errado? Detestaria ter de dar razão àqueles que insistem em enfiar todos os jornalistas de viagens no mesmo saco, o dos alienados que vivem fora da realidade e se preocupam em reproduzir, tão só, o lado cor-de-rosa da vida.

4 comentários:

Suzi disse...

Se a revista fosse minha e houvesse espaço, esse teu texto de hoje seria o editorial. Se não houvesse espaço, eu criaria.
Por que tanto medo??

Muito interessante ver com teus olhos os bastidores da imprensa.

Beijos de boa semana!

Anónimo disse...

Obrigado, Suzi.

marta r disse...

Nem tu és alienado nem os leitores são estúpidos. Esta maldita corrente do "politicamente correcto" é que nos trama. E os interesses que se jogam ao nível das chefias. É um dificil equilibrio de forças só aconselhável a pessoas muitoooo TEIMOSAS.... daquelas que são capazes de lutar até ao fim contra qualquer tipo de censura...
Assim, de repente, até estou a lembrar-me de uma pessoa assim....

Custódia C. disse...

A palavra censura só por si já me causa arrepios. Faz-me a maior confusão não termos o direito de expressar a nossa visão das coisas, seja a que nível for.
A verdade deve estar sempre lá, mesmo quando se trata de um roteiro de viagem. É fundamental para não nos sentirmos defraudados.