Fui ver, na passada semana, o filme mais recente de Mel Gibson,
Apocalypto. Tenho um certo fascínio pela civilização maia, mas Gibson parece ter levado o seu interesse muito mais longe, pois, diz-se, devorou, literalmente, tudo o que havia sobre o assunto para se preparar bem para esta epopeia ― que co-produziu com Farhad Safinia ― e não poupou nos adjectivos sempre que era entrevistado a esse respeito. Nada mais justo e sensato.
(Mel Gibson durante a rodagem de Apocalypto, direitos reservados)Não ia, a priori, com um juízo de valor já feito, mas agradou-me a ideia de ir ver um filme sobre os maias que, para variar, não é falado em inglês, não espartilha o tema ao eterno confronto com os bárbaros invasores e não recorre a actores bem conhecidos do grande público para os fazer passar por aquilo que não são. Por outro lado, habituámo-nos a ver os maias como apenas vítimas da febre do ouro e da cobiça ocidental e Gibson dá-nos o retrato de um povo que foi também opressor e que, e é esse o seu ponto de partida, só pôde ser eliminado enquanto civilização porque internamente já se encontrava em decadência. Daí o título Apocalypto, que em grego quer dizer “recomeço” e vai ao encontro da previsão maia de que o mundo, como o conhecemos, acabará na sexta-feira, dia 21 de Dezembro de 2012.
(Cena do filme Apocalypto, de Mel Gibson, direitos reservados)Gibson, que também já deve ter aprendido uma ou duas coisas com a vida (com os seus erros e os erros dos outros), fez um esforço notável de reconstituição histórica e física; ou seja, não se limitou a explorar a riqueza cromática e folclórica das plumas, das jóias, dos adornos e conseguiu apresentar-nos uma visão ficcionada, é certo, mas tão próxima ao real quanto possível ou desejável num filme ― eu diria mesmo assustadoramente real ―, ao recriar o modo como viviam e viam o “mundo”. A cena do mercado na cidade maia, por exemplo, é, a meu ver, absolutamente extraordinária do ponto de vista do detalhe, assemelhando-se mais a pura ourivesaria cinematográfica. Um trabalho de
casting primoroso.

É claro que ajuda, e muito, que todos os diálogos sejam em dialecto maia (não há campanha que pague este tipo de divulgação de uma língua que está, como tantas outras, em risco de extinção para as gerações vindouras), que a maioria dos actores e figurantes seja de origem maia (e quando não são têm um tipo físico que se coaduna) e que a caracterização tenha tido em atenção que era importante destacar aquilo que os maias valorizavam enquanto padrão (parte do escalpe rapado desde a mais tenra infância para aumentar a testa, lóbulos das orelhas, narinas e lábios perfurados com ossos, tatuagens através da escarificação da pele, olhos tortos…) e não aquilo que, aos nossos olhos, poderia ser mais sugestivo. Não se ficou pelo ostensivamente exótico.
Consta que o orçamento deste filme rondou os cerca de 50 milhões de dólares e uma coisa é certa: só a parte da caracterização e do guarda-roupa, que implicou horas e horas de pesquisa e a contratação de várias dezenas de pessoas do México e de Itália para tratarem desta questão primordial no filme, consumiu boa parte dos recursos. Outro grande investimento de Gibson foi a contratação de Dean Semler, um mago com câmara, e a utilização de um novo sistema de câmaras digitais que facilitou a filmagem das cenas trepidantes que vemos durante as perseguições na selva.
(Cena do filme Apocalypto, de Mel Gibson, direitos reservados)
É um filme violento ― numa ou noutra cena, não tenho pudor de o confessar, tive mesmo de desviar o olhar ―, com uma narrativa simples, mas que funciona, lá está, pela sua tentativa de aproximação ao real. Mel Gibson, muito antes de começar as filmagens, decidiu que as mesmas se passariam no México (recordo que o México, juntamente com o Belize e a Guatemala, foi o berço da civilização maia), o que, desde logo, lhe deu um cunho de autenticidade (reforçado depois pela contratação de técnicos e actores locais).
(Cena do filme Apocalypto, de Mel Gibson, direitos reservados)
É claro que as escolhas mais óbvias como locações seriam a península do Iucatão, onde ficam ruínas maias célebres como Chichén Iza (
na foto, uma das finalistas na eleição das novas sete maravilhas do mundo) ou Uxmal, e até mesmo Campeche, onde fica Copal, mas, após várias conversas e negociações com as autoridades locais, Gibson quis continuar no México, mas escolheu o estado de
Veracruz, sem tradição maia. É claro que as autoridades não se conformaram em perder o protagonismo (e o dinheiro, pois estas coisas envolvem milhões e funcionam como chamariz turístico) e acusam Gibson de ter feito um filme sobre os maias sem ter filmado em locais onde os maias viveram de facto ― fora os críticos, que apontam incorrecções históricas como o facto de se insistir muito nos sacrifícios humanos, que era uma prática mais recorrente nos aztecas do que nos maias, ou ainda no facto, que a mim já me parece preciosismo a mais, de aparecerem a falar maia “moderno” do Iucatão em vez do maia antigo ou clássico.
(Mel Gibson durante a rodagem do Apocalypto em Veracruz, México, direitos reservados)
Aqui entramos num outro ponto que me interessa, e que justifica eu ter trazido este filme para um blogue de viagens. Filmar em locais reais aumenta a veracidade, mas pode também ter um impacto negativo
a posteriori. É bem provável que Gibson se tenha lembrado de exemplos recentes como
A Praia, com Leonardo DiCaprio, que levantou inúmeros protestos por terem filmado num território protegido, a ilha tailandesa de Phi Phi Ley, para onde levaram, inclusive, várias dezenas de palmeiras para dar um ar mais luxuriante ao local. Já para não falar que uma praia até então pouco conhecida, quase selvagem, passou depois do filme a receber hordas de turistas de todo o mundo. Gibson, para quem dinheiro não é um problema, deve ter pensado que poderia meter-se numa grande confusão ao filmar em locais com ruínas históricas, e mudou de planos. Foi, aliás, mais longe e fez questão de se encontrar com o presidente mexicano e doar um milhão de dólares para ajudar na reconstrução de várias comunidades após a passagem do furacão Stan.
(Um dos cartazes do Apocalypto, com cena no El Salto Ayipantla, direitos reservados)
(El Salto de Ayipantla, em Los Tuxtlas, Veracruz, México, direitos reservados)
As filmagens, que eram apenas para durar quatro meses, estenderam-se por dez, tendo decorrido entre finais de 2005 e meados de 2006. À parte de algumas rodagens nos E.U.A., na Costa Rica e no Reino Unido, tenho a dizer que grande parte daquilo que vemos no ecrã foi captado no estado mexicano de Veracruz. A começar nas cenas passadas na selva, que tiveram lugar nas florestas húmidas de Catemaco. Já a sequência em que a personagem principal, Pata de Jaguar, foge dos guerreiros maias, chegando ao ponto de saltar de uma cascata, foi filmada em El Salto de Ayipantla, na localidade de San Andres de
Tuxtlas, e esteve quase para não acontecer porque na hora H apareceu um grupo de turistas vindo da Cidade do México… A cidade maia do filme, com as suas pirâmides, foi recriada num vale rodeado de planaltos, conhecido como La Cueva del Burro, em
Paso de Ovejas (e foi o que atrasou mais a produção do filme, envolvendo a contratação de 500 trabalhadores locais), à imagem da cidade maia de
Tikal, na Guatemala. Algumas sequências foram ainda realizadas em Las Granjas, perto de Boca del Rio. No final das gravações, Gibson prometeu, como é da praxe, voltar ali para fazer outro filme. Certo e sabido é que o estado de Veracruz não tardará a receber mais turistas graças a este filme. Resta esperar que o saibam fazer com sabedoria e honrar um destino que se presta, sobretudo, a um tipo de turismo ecológico e de aventura. Era bom que, neste caso, também já tivessem aprendido alguma coisa com os erros dos outros.
(Lago e floresta húmida de Catemaco, Veracruz, México, direitos reservados)
(Floresta húmida em Los Tuxtlas, Veracruz, México, direitos reservados)
5 comentários:
Gibson. Gosto dele. Sempre gostei. E tua conclusão, relativamente à não-filmagem em terras dos maias, me parece bastante lógica, e bastante afinada com a sua sensatez.
Acho o máximo, quando os filmes não são falados em inglês. Aquele pessoalzinho que se acha o dono do mundo não costuma dar cartaz a esses filmes, porque eles, simplesmente, não têm paciência para legendas (ou não conseguem acompanhar, mesmo. hehehehe), e a Academia também termina indo pelo mesmo caminho. É por essas e outras que prefiro um filme desses a qualquer outro tipicamente Hollywoodiano! rs*
beijitos!
Volto mais logo, já percebi que não vou ter tempo de ler agora e este promete :)
Estas tuas crónicas são excelentes para nos deixar bem "por dentro".
Vi a "Paixão de Cristo" e gostei bastante, embora me parecesse que não havia necessidade de tanto sofrimento. Terá sido assim? Uma das coisas de que gostei foi também o filme ser falado em aramaico e latim. Tornou tudo tão real .... Este acho que não vou ver no cinema. Neste momento não consigo suportar um filme deste tipo. Há sempre uma grande realidade subjacente. Talvez veja depois em DVD. Se não aguentar a violência, podemos sempre fazer uma pausa e recomeçar depois :)
CCC:
Acho que fazes bem. Não chega a ser excessivamente violento, mas é duro. Espera pelo DVD. Tudo de bom!
O teu post dá vontade de ir ver o filme. O pior é mesmo a questão da violência de algumas cenas... Até podem fazer sentido na história mas acabo sempre por levá-las para casa e não consigo desligar-me delas.
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